Estandarte(2008)

Fique tranquilo, ninguém aqui vai recorrer àquele palavrão que feirantes e jornalistas burocras adoram repetir: mad**ro. É um pouco por aí, mas, ao mesmo tempo, não é. Após 17 anos de carreira, quase todos eles em posto hegemônico no pop nacional, o Skank chega ao décimo disco (incluindo na conta a coletânea Radiola) sem complexos e em paz com suas origens e essência. Quem já vendeu, entre CDs e DVDs, cerca de 5,5 milhões de cópias, teoricamente não precisa provar mais nada para ninguém. Até aqui, porém, Samuel Rosa, Henrique Portugal, Lelo Zaneti e Haroldo Ferretti trabalhavam sob uma patrulha auto-imposta: jamais soar presos a fórmulas vencedoras.

Em Estandarte, o que se ouve é uma banda que decidiu relaxar e, sem trocadilhos, fazer gozar. “Teu prazer é o meu estandarte”, proclama Samuel na fervida faixa “Chão”, balanço com tempero eletrônico e riff de guitarra à ZZ Top. “Céu que te convida/ Onde o som bater/ Eu me encaixo/ Groove na medida/ Eu te espero em cima ou baixo”, avisa a letra do velho parceiro Chico Amaral, depois de mencionar de passagem a caliente “Hey Negrita”, pérola funky dos Rolling Stones de 1976. Segundo Samuel, a idéia original perseguia outra referência stoniana, a discothèque “Emotional Rescue”, de 1980, com vocais em falsete, dobrados.

Em discos anteriores, a simplicidade (dois acordes) da canção poderia ter sucumbido a cobranças internas. Desta vez, não. “Já tivemos esse pudor, mas agora nos permitimos ser bem mais espontâneos”, revela o cantor.

A faixa de abertura, “Pára-raio”, já chega chamando na chincha. Investe num balanço híbrido irresistível estilo Roberto Carlos ?71, entre o soul e a Jovem Guarda, com naipe de metais no indo-e-vindo e letra de Nando Reis: “Seu brinquedo imaginário/ Feito pra lhe distrair/ Paro dentro, entro e saio”… Não é duplo sentido, é ripa na chulipa mesmo, amigo. E isso sem falar no momento I-wanna-be-your-dog: “Lato intenso em detalhes/ quero você aqui”.

Como brinca o próprio Samuel, trata-se de um discurso “menos assexuado, mais obsceno”. Ou, como eu gostaria de colocar agora, com jeitinho: é papo convexo sob medida para o côncavo do pop brasileiro atual, tão carente de sexo em meio ao chororô emo e às ladainhas seriosas tipo “atitude consciente”.

Estandarte é um feliz reencontro com o produtor Dudu Marote, velho companheiro que ajudou a transformar em discos de diamante (mais de um milhão de exemplares vendidos) os álbuns Calango (1994) e O Samba Poconé (1996). Como a intimidade é uma – você sabe, aquilo que a inveja também é… -, Dudu chegou sem nenhuma reverência. Ao criticar aqui e ali como outros produtores não ousariam fazer, fez subir o nível de exigência da banda. E deu um norte fundamental a partir do conselho de amigo: “Dêem mais risada, sejam mais despretensiosos”.

Que fique bem claro aqui, como está nas 12 faixas do disco: o Skank não foi atrás de Dudu em busca de momentos gloriosos do passado, de uma suposta jamaiquice perdida. O vasto conhecimento do produtor em música eletrônica e balanço era exatamente o que o quarteto queria para evidenciar sua natureza de banda de levadas, de hits de pista e grooves. Acima de qualquer nostalgia por reggae, ska ou dancehall.

Estandarte foi gravado entre janeiro e agosto, em esquema diferente dos trabalhos anteriores: aos poucos, nos intervalos que a agenda de shows permitia. A maior parte das composições evoluiu a partir de levadas lapidadas em jams no estúdio Máquina, em Belo Horizonte. Valeu o azeitamento que a estrada proporciona: muito do que foi tocado nessas sessões “brutas” sobreviveu na versão final – em especial, os teclados.

Na faixa “Notícias do Submundo”, a guitarra é toda de primeiro take, sem overdubs. Os mais cultos irão detectar Homero e Rimbaud na letra, mas a massa roqueira deve viajar mesmo é com o psicodelismo quase garageiro exposto.

As influências sessentistas e beatles não foram abandonadas. “Escravo” hipnotiza com o groove à go-go filiado a “Taxman” e tantos outros hits da década-chave do rock, o charme exótico da sitar a sublinhar a letra romântico-muçulmana (!). “Assim Sem Fim”, parceria com Cesar Mauricio (ex-Virna Lisi e Radar Tantã) tem roupagem que cabe no que eles chamam de encontro de LCD Soundsystem com John Lennon. Mas na alma e na cervical melódica é puro Clube da Esquina.

E espere até ouvir “Sutilmente”, uma daquelas baladas de simplicidade brilhante, feita a partir de linda letra de Nando Reis e emoldurada em luxuoso arranjo de cordas… Fica evidente que também não há ruptura com a canção mineira, até porque ela está na essência do grupo muito antes de “Resposta” (antes até de ele adotar o nome Skank…). “Este disco é, mais do que qualquer outro, a síntese de tudo o que o já fizemos. Se é que uma banda pode fazer a síntese de tudo que ela fez, 15 anos depois…”, questiona Samuel.

Um bom resumo de Estandarte é a faixa que já está nas rádios, nos tocadores de mp3 e no coração dos fãs. “Ainda Gosto Dela” é um docinho pop edulcorado pelos vocais de apoio de Negra Li, que acariciam nossos ouvidos uma oitava acima de Samuel. Romântica, naîf e digna sucessora de hits como “Dois Rios”, com efeitinhos eletrônicos na moldura do refrão mais beniano (de Jorge Ben, bem entendido!) já ouvido nas últimas três décadas. Uma mistura original e pra lá de brasuca, amostra perfeita do que o talento de Haroldo, Lelo, Henrique e Samuel vem produzindo há 17 anos.

Na capa, uma bela pintura a óleo honra a tradição da arte pop surrealista na embalagem dos discos do Skank. A despeito do que o clima “menos assexuado” do disco possa sugerir, a loira pelada com o olho a verter um líquido verde não é decorrência de briefing algum. Ela é fruto da visão particular do paranaense Rafael Silveira, 29 anos, um artista influenciado pela publicidade dos anos 1940 e 1950, por quadrinistas como Robert Crumb e pelos pintores Mark Ryden e Eric White. No encarte, outras nove obras dão a dimensão do talento de Rafael, já reconhecido pela editora americana Dark Horse, que edita os livros de Frank Miller.

Pedro Só – outubro de 2008

P.S.: Por essas e outras é que duas feras americanas trabalham com o Skank direto, garantindo uma qualidade superior de som: Michael Fossenkemper, responsável pela mixagem de O Samba Poconé, e Radiola, e o legendário Bob Ludwig, que assina a masterização. Não é uma correria qualquer para os gringos. Desta vez, Bob até fez questão de elogiar a perfeição técnica de “Chão”. Vindo que quem está acostumado a mexer com sons de Paul McCartney, Nirvana e Led Zeppelin, não é pouca coisa.

Faixas

  1. Pára-Raio
  2. Ainda Gosto Dela
  3. Chão
  4. Canção Áspera
  5. Noites de Um Verão Qualquer
  6. Escravo
  7. Notícias do Submundo
  8. Sutilmente
  9. Um Gesto Qualquer
  10. Assim Sem Fim
  11. Saturação
  12. Renascença
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